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Que sejamos todos manés a partir de hoje. Manés vencedores

O futebol permanece o nosso poema épico nacional. Ele não foi tecido em versos, mas em crônicas, as de Nelson Rodrigues, o Camões brasileiro

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Arquivo Nacional
O escritor brasileiro Nelson Rodrigues em foto posada preta e branca. Ele olha para a câmera e aponta com o dedo indicador - Metrópoles
1 de 1 O escritor brasileiro Nelson Rodrigues em foto posada preta e branca. Ele olha para a câmera e aponta com o dedo indicador - Metrópoles - Foto: Arquivo Nacional

Futebol, para mim, é uma lembrança do meu pai, que me levava ao Pacaembu e ao Morumbi, para ver o Santos de Pelé jogar — e, invariavelmente, bater o Corinthians, o time para o qual ele torcia (homem desprendido, o meu pai). Derrotar o Corinthians era uma das alegrias de Pelé, que se divertia com o silêncio da torcida adversária, como ele próprio declarou uma vez. Médico, o meu pai assistia o América de São José do Rio Preto, quando o time vinha jogar em São Paulo ou em Campinas. Fazia as vezes de médico do América. E lá ficava eu, juntamente com ele, no banco de reservas, com um sentimento de astronauta da Apolo. Era como ir à Lua.

Afora o Santos de Pelé, havia o Brasil de Pelé. E de todos os outros craques que venceram a Copa de 1970, vitória que foi uma das minhas maiores alegrias de menino. De todos os meninos. Era um tempo em que se chamava a seleção de escrete canarinho. Era um tempo em que o escrete canarinho não era um time no qual os egos dos jogadores só são ofuscados pelas marcas dos patrocinadores. Era um tempo, tempo, tempo. Deixemos para lá a melancolia dos velhos, que sempre acham o seu tempo de juventude melhor do que o do seus filhos e o do seus netos.

Era um tempo em que a seleção ainda era a pátria em chuteiras. Aqui não há melancolia, porque ela continua sendo, assim como o Rio de Janeiro continua sendo, aquele abraço. Muito da paisagem exterior pode ter piorado, mas a interior permanece incólume. A alma. O espírito. Já não gosto mais tanto de futebol, o menino não foi pai do homem, mas as chuteiras ainda unem esta pátria, reconheço, mãe tão pouco gentil. O futebol permanece o nosso poema épico nacional.  

O nosso poema épico nacional não relembra batalhas, guerras, não vale a pena, mas dribles, chutes, passes, gols, triunfos em campo. O nosso poema épico nacional não foi tecido em versos, mas em crônicas, as de Nelson Rodrigues, o Camões brasileiro, autor da definição do parágrafo anterior, que calçou para sempre as chuteiras na pátria.

O Camões brasileiro está contido — ou maravilhosamente incontido — na coletânea À Sombra das Chuteira Imortais, entre outras organizadas pelo Ruy Castro, ex-colega de redação agora acadêmico. Além de Pelé, um dos heróis recorrentes é Mané, o Garrincha, declarado morto várias vezes quando estava vivo. Em 1966, esse Mané entrou morto no Maracanã, vestindo a camisa amarela contra uma seleção gaúcha, em jogo preparatório para a Copa do Mundo da Inglaterra (fiasco histórico que adiou o tri para 1970). Ele entrou morto no estádio só para os comentaristas esportivos. O povo mesmo nunca o havia matado. Fale, Nelson:

“Na primeira bola que recebeu, já o povo começou a rir. Aí é que está o milagre — o povo ria antes da jogada, da graça, da pirueta. Ria adivinhando que Garrincha ia fazer a sua grande ária, como na ópera. Como se sabe, só o jogador medíocre faz futebol de primeira. O craque, o virtuose, o estilista, prende a bola. Sim, ele cultiva a bola como um orquídea de luxo. 

Foi uma das jogadas mais histriônicas de toda a vida de Mané. Primeiro, pulou por cima da bola. Fez que ia mas não foi. Pula pra lá, pula pra cá, com a delirante agilidade de 58. Lá estava a bola, imóvel, impassível, submissa ao gênio. E Garrincha só faltou plantar bananeiras. Três ou quatro gaúchos batiam uns nos outros, tropeçavam nas próprias pernas.”

Que vocês riam muito na Copa que começa hoje para o Brasil. Que sejam todos manés, jogadores e torcedores, a partir de hoje. E que eu volte a ser um pouco aquele menino dos anos 60.

Vença, Mané.

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